Dizem que brasileiro é apaixonado por carro, mas será que existem pessoas que gostam tanto que até construiriam um automóvel na garagem de casa? A resposta é sim e não é uma novidade recente.
Além daqueles “projetistas de fim de semana”, que montam réplicas de carros famosos ou superesportivos, geralmente com a carroceria desenvolvida em fibra de vidro; ou dos criativos “engenheiros improvisados”, que transformam veículos originais em criações exclusivas com modificações na carroceria, na mecânica ou apenas em personalizações estéticas; existem apaixonados muito criativos que preferem projetar um veículo a partir do zero e com paciência vão dando forma à sua ideia até criar um veículo totalmente novo, fora dos catálogos das montadoras, fábricas de veículos fora de série ou empresas de modelos personalizados.
Estes geniais brasileiros são os personagens desta nota. Pessoas comuns, muitas com profissões alheias à indústria automotiva, que decidem colocar na rua seus sonhos de papel. E não são poucos, nem recentes. Vamos conhecer alguns deles.
O automóvel surgiu no final do século XIX, mais precisamente da cabeça e mãos do alemão Karl Benz, fundador da Mercedes-Benz, que em 29 de janeiro de 1886, registrou seu Benz Patent-Motorwagen, o primeiro veículo, que na realidade era uma carroça de três rodas com um motor a gás embutido.
O primeiro veículo só chegou em terras brasileiras em 1892, um Peugeot, trazido da França por Alberto Santos-Dumont. De lá para cá, o automóvel se tornou objeto de desejo quase universal, surgindo diversos fabricantes, alguns ainda em atividade e outros que desapareceram ao longo das décadas.
Essa profusão de marcas e modelos, também criou uma legião de apaixonados por carros que decidiram, com maior ou menor sucesso, projetar e construir seus próprios veículos, com criatividade, dedicação e muita paciência.
Pioneiro – O primeiro veículo artesanal do Brasil foi o criado pelo imigrante italiano Claudio Bonadei, que, entre 1903 e 1904, montou um automóvel completo para seu uso próprio, aproveitando um motor francês de 3,5 cv e construindo pessoalmente chassi e grande parte dos acessórios e elementos mecânicos.
Nascido na Itália em 1879, Claudio Bonadei veio para o Brasil com 20 anos de idade e se estabeleceu em São Paulo, mantendo a mecânica como hobby. Em 1903, montou na garagem de casa um chassi e, utilizando um motor francês importado, começou a construir um automóvel, fazendo ele mesmo a carroçaria e quase todos os acessórios, como buzina, lanternas, rodas de demais itens.
Em 1905, o carro ficou pronto, mas ainda havia um problema. O carro não passava pelo portão da garagem e a única solução foi derrubar as paredes para levá-lo à rua. Neste mesmo ano, o carro artesanal de Bonadei, o primeiro fabricado no Brasil, subiu a ladeira da tradicional Avenida São João, no centro da capital paulista, sendo saudado por dezenas de pedestres que acompanhavam a façanha.
A partir da experiência de Bonadei, em 1902, muitos veículos artesanais em exemplar único foram montados no Brasil.
Cosmos 63 – Já na década de 60, com a indústria automotiva nacional em franco desenvolvimento, surgiu um dos primeiros veículos feitos em casa: o Cosmos.
Os irmãos José Dinarte, Pedro e Claudelino Rodrigues, gaúchos da cidade de São Gabriel, criaram e construíram, em 1963, numa pequena oficina no quintal da casa da família, o único exemplar do veículo artesanal Cosmos 63.
A carroceria em estilo picape com teto rígido removível foi desenhada pelo irmão José Dinarte e o trio usou um chassi Ford modificado. O motor usado foi um Ford V8 de 60 HP e a finalização do projeto consumiu mais de dois anos de trabalho, pois os irmãos trabalhavam no veículo nos intervalos de suas atividades.
Embora esse tenha sido o único exemplar do veículo gaúcho, o Cosmos 63 ainda existe e foi doado ao patrimônio do Automóvel Clube de São Gabriel. Na foto, o sr. Claudelino, hoje já falecido, ao lado de Miguel Varella, na época presidente do Automóvel Clube de São Gabriel, com o Cosmo 63 ao fundo no Encontro de Automóveis Antigos de São Gabriel, em 2013.
Scardua-Mut e o Capixaba – Também na década de 60, mais um apaixonado por carros se aventurou na construção de modelos artesanais. O empresário e profissional do setor de reparos de carroceria Santos Scardua, da cidade de Guarapari (ES), participou de um concurso da Revista Quatro Rodas para eleger o protótipo brasileiro com melhor carroceria.
Com dois modelos artesanais, o conversível Scardua-Mut e o cupê Capixaba, em 1967, ele participou do "Troféu Quatro Rodas" para projetos automotivos brasileiros e o lanterneiro do Espírito Santo, embora não tenha sido o vencedor, alcançou grande visibilidade na época.
Santos Scardua projetou, montou e inscreveu no concurso os dois veículos que montou em sua oficina durante os horários livres, além de um terceiro modelo, o Scardua GT, que não pode ser apresentado no concurso por motivos técnicos.
O Scardua-Mut era um conversível de linhas esportivas montado sobre uma mecânica Gordini.
Já o Capixaba era um cupê montado sobre o chassi e mecânica VW. Ambos foram construídos em chapas de aço modeladas na própria oficina de funilaria e pintura de seu idealizador. O resultado foi publicado na mesma revista em maio de 1967 e a comissão julgadora elegeu o Puma GT DKW como o ganhador entre onze inscritos.
O carrinho vermelho de Curitiba – Um garoto de 12 anos sonhou em construir um carro e em 1952 colocou seu projeto em prática. Ailton Bontorin, um mecânico da cidade de Curitiba (PR) criou um carrinho compacto com carroceria metálica e motor de dois tempos na traseira, extraído de uma motocicleta DKW ano 1937. Para equipar seu veículo, ele usou quatro faróis de bicicleta e ainda finalizou a personalização com logotipos retirados de uma geladeira.
O carrinho do seu Ailton fez tanto sucesso que virou matéria do programa de TV “AutoEsporte", exibido na Rede Globo no ano de 2010. E acreditem, o carrinho ainda continuava rodando pelas ruas da capital paranaense, com o hoje mecânico aposentado Ailton.
O carro de madeira – Em 1997, o mecânico Fernando Fernandes, morador da capital mineira, era tão apaixonado por carros que decidiu criar um barzinho temático para sua casa e montou um carro de madeira. O projeto ficou tão legal que ele decidiu tirar o bar de madeira da sala e colocar um motor. Assim, o que era um bar, virou um veículo e até 2009 ainda rodava por Belo Horizonte (MG).
A carroceria foi toda feita em madeira e no lugar dos faróis industrializados, ele usou duas cascas de coco com as instalações elétricas para as lâmpadas. O carro em madeira tinha capacidade para apenas o motorista e dimensões bastante reduzidas, com 2,10 m de comprimento por 60 cm de largura. O motor era de uma motocicleta de 125 cc, com a partida feita no pedal, também da moto, que ainda cedeu o câmbio de cinco marchas e as rodas.
A frenagem só ocorria nas rodas traseiras e uma curiosidade: a marcha-ré era no estilo Fred Flintstone, ou seja, era preciso colocar o pé no chão por uma abertura no piso do veículo e empurrar para trás.
Até carro elétrico – Mas os criativos brasileiros nunca param e continuam criando suas engenhocas dentro da garagem. João Alfredo Dresch, empresário gaúcho do ramo dos fermentos, também conhecido como o Henry Ford do Vale do Taquari, é um deles.
Aos 13 anos, desafiado por um amigo, desmontou e consertou sozinho um ferro elétrico. Em 2018, aos 72 anos, ele enfrentou mais um desafio, desta vez apresentado pelo próprio Dresch: construir um carro elétrico.
O plano surgiu em 2009, durante uma viagem de férias à Itália. Ele ficou encantado ao ver um carro estacionado nas ruas de Roma e conectado a uma tomada, junto a um poste de energia elétrica.
Filho de um padeiro descendente de alemães e de uma dona de casa de origem italiana, com apenas o Ensino Fundamental concluído e um curso técnico em eletrônica, o autodidata gaúcho tinha certeza que seria capaz de fabricar um veículo elétrico e tratou de estudar e levantar as providências necessárias para criar um VE – Veículo Elétrico – feito no Rio Grande do Sul.
Apesar da incerteza, conseguiu reunir o grupo necessário para fazer surgir o projeto JAD (nome formado pelas letras iniciais do inventor). Mesmo sem ter o projeto já concebido e tecnicamente delineado, ele definiu que queria um veículo somente com aceleração e freio, que fosse "bivolt" (recarregável em 110v e 220v) e que "coubesse em qualquer cantinho".
Foram quase três meses para montar o chassi do veículo. Depois, sem qualquer projeto de design, Dresch fez um molde de papelão em tamanho real. Ele mesmo o recortou até chegar ao visual desejado. A partir do modelo ideal, construiu o "esqueleto" do veículo com tábuas de compensado. Depois, cobriu-o com fibra de vidro.
Com o design pronto era hora de buscar os demais componentes que iriam compor o protótipo. Os faróis vieram de uma moto Honda Biz 125; o para-brisa saiu de um caminhão; o painel foi retirado de um Corsa; as lanternas de um carro acidentado em São Paulo; as 14 baterias de teste vieram do Paraguai; e os bancos foram aproveitados de uma Meriva capotada.
Em 2014, ele finalizou o JAD, o veículo no qual cabem "dois passageiros e um cachorro pequinês", como o próprio criador o define, e tornou-se famoso com sua ficha técnica incomum: 1 m 5 cm de largura, 1 m 95 cm de comprimento, alcance de 70 km/h, autonomia de duas horas após carregamento na rede elétrica durante duas horas e baixo custo de rodagem.
O pequeno VE fez tanto sucesso que o empresário gaúcho foi convidado para participar do programa “Mais Você”, apresentado por Ana Maria Braga, na Rede Globo, e a apresentadora até deu umas voltas com o pequeno JAD pelas ruas do Projac, complexo de gravação da Globo no Rio de Janeiro (RJ).
Em 2016, Dresch recebeu apoio da Universidade de Passo Fundo (UPF) para produzir o projeto do JAD II, um elétrico mais potente e com mais autonomia. Estudantes da área da Engenharia se dedicaram à criação de esboços e, em 2018, mesmo sem investimento financeiro de algum parceiro, Dresch decidiu tirar do papel uma das propostas dos alunos. Entre as novidades do JAD II estão o incremento da velocidade e a autonomia: o carro alcançava 120 km/h, podendo rodar até 400 quilômetros antes de ser recarregado.
O que diz a Lei
O registro de veículos de fabricação artesanal no Brasil foi regulamentado pela Resolução 699, de 10 de outubro de 2017, do Contran para tal definindo-os como “… todo e qualquer veículo de uso próprio, concebido e fabricado unitariamente sob responsabilidade individual de pessoa natural ou jurídica, atendendo a todos os preceitos de construção veicular”.
Disciplina o registro e licenciamento de veículos de fabricação artesanal, nos termos da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, e nos termos do Decreto nº 4.711, de 29 de maio de 2003, que dispõe sobre a coordenação do Sistema Nacional de Trânsito (SNT).
Esta Resolução disciplina o registro e licenciamento de veículos de fabricação artesanal, nos termos do art. 106 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB).
Todo veículo artesanal deve ter um projeto técnico assinado por engenheiro responsável técnico, com formação ou habilitação na área mecânica, conforme regulamentação do respectivo Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA) e nos termos das Resoluções do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (CONFEA).
Para circular em vias públicas, o veículo de fabricação artesanal deve estar registrado e licenciado junto ao órgão executivo de trânsito dos Estados ou do Distrito Federal.
Cabe ao fabricante providenciar o registro e o licenciamento do veículo de fabricação artesanal junto ao órgão executivo de trânsito dos Estados ou do Distrito Federal.
Compete ao órgão máximo executivo de trânsito da União regulamentar os procedimentos para a concessão de marca/modelo/versão e emissão do Certificado de Adequação à Legislação de Trânsito (CAT) para o registro dos veículos de que trata esta Resolução no Registro Nacional de Veículos Automotores (RENAVAM).
O órgão máximo executivo de trânsito da União poderá solicitar ao fabricante do veículo a apresentação de relatórios de testes e ensaios que comprovem o atendimento dos requisitos de segurança veicular previstos na legislação, observadas as especificidades de cada tipo de veículo.
Os órgãos executivos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal deverão encaminhar ao DENATRAN a documentação para a concessão do código de marca/modelo/versão de veículos do Registro Nacional de Veículos Automotores e concessão de CAT, conforme regulamentação específica.
Para proceder ao registro e o licenciamento dos veículos de que trata esta Resolução, os órgãos executivos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal deverão:
● Conceder e autorizar a gravação do número de identificação veicular (VIN) conforme
procedimentos estabelecidos;
● Emitir prévia autorização para a realização de inspeção de segurança veicular;
● Exigir a apresentação do Certificado de Segurança Veicular (CSV) expedido por
Instituição Técnica Licenciada (ITL) conforme regulamentação específica;
● Solicitar a apresentação do Certificado de Adequação a Legislação de Trânsito (CAT)
emitido pelo órgão máximo executivo de trânsito da União;
● Exigir a Nota Fiscal eletrônica (NF-e) e a respectiva DANFE de todos os componentes
utilizados, de acordo com as especificações do Anexo II;
● Independentemente do tipo do veículo ou do projeto, cada fabricante poderá solicitar
o registro e licenciamento de, no máximo, 2 (dois) veículos de fabricação artesanal no
período de 1º de janeiro a 31 de dezembro de cada ano;
● O veículo de fabricação artesanal deverá atender a todos os requisitos de segurança
estabelecidos pela legislação, salvo exceções previstas em regulamentação específica.
Ficam proibidos:
Fabricação de veículo artesanal do tipo ônibus, micro-ônibus, motor-casa, caminhão, caminhão trator, semirreboque, trator de rodas, trator de esteira, trator misto, chassi plataforma, reboque com Peso Bruto Total (PBT) superior a 750 kg e motocicleta, motoneta, triciclo acima de 300 cc.
A alteração de características originais de veículos fabricados artesanalmente.
Já dá para deduzir que o carro confeccionado a partir de um tambor de 200 litros no começo desta nota, desses que vemos sendo usados como churrasqueiras ou depósito de sucata ou coletor de lubrificante usado em oficinas, nunca receberia o CAT.